sábado, 30 de abril de 2011

Gaguejar de um inveterado (conto à la Nuno Ramos)

Ela está chegando. Vai acabar comigo, como sempre. Tenho certeza. Vai me derrubar, rasgar minha carne, esparramar minhas vísceras e incinerá-las, mais uma vez, como sempre. Minha vida inteira lutei contra ela – em vão. Já deve estar no meu quarto a essa hora. Na verdade, nunca sei exatamente onde ela está: me seguindo, ou me vigiando de longe, ou me esperando na próxima esquina, ou num beco sem-saída, na escuridão. É, ela pode estar no meu quarto agora. Ou me esperando à porta do trabalho. Talvez escondida no armário. Ou depois da curva logo ali à frente. Ou espreitando atrás de mim. Ou em todos os lugares ao mesmo tempo. Ela já chegou? Sempre esteve? Já me deixou alguma vez? Sou dono dela ou ela de mim? Ela vai aparecer, tenho certeza, e vai me derrubar e me sufocar e espremer meus olhos e abrir meus pulmões e costurar minhas veias e arrancar meus cabelos fio a fio, mais uma vez – como sempre.