terça-feira, 11 de outubro de 2011

O décimo terceiro Arcano Maior


I

Não podia pisar nas frestas. Não podia. Havia algo de mágico nelas. Se pisasse, lhe cortariam a sola do pé. Precisava pular as frestas, de piso em piso. Piso cinza. Cor de concreto. Assim não teria o pé cortado. Estava feliz. De repente, uma calça jeans. E o esbarrão.
– Olha pra frente, minha filha! – disse a mãe, cansada de repetir a frase – Que coisa!
Atordoada, Emília olhou para cima. Sobre a calça jeans, uma camisa branca, suada. Da camisa saía um pescoço marrom, cheio de vincos, que sustentava um rosto enrugado, tão marrom quanto, oleoso. Era um rosto horrível, abominável. Estava olhando para Emília. Aquele rosto horroroso sorriu; contorceu-se ainda mais, mostrando uma fileira desconjuntada de dentes muito amarelos e muito úmidos. Emília sentiu-se repugnada com a visão daquilo. Era um homem velho. No entanto, mais parecia um monstro.
– Cuidado, mocinha – disse o monstro, estendendo a mão em direção à cabeça de Emília. Era uma mão ainda mais horrível que o rosto, e enorme. Parecia uma aranha gigante. Parecia um monstro horrível, marrom, com horríveis mãos de aranha gigante. Emília agarrou-se à mãe, fugindo daquela aranha nojenta. Seu coraçãozinho disparou de medo. A barriga ficou fria. Apertou a mão quente que segurava na sua, a mão da mãe. Esta pediu desculpas ao monstro pela desastrada da filha e seguiu andando, puxando a pequena, que não parava de fitar o pobre homem abatido pelo calor que fazia.
Emília desviou os olhos daquilo. Voltou a olhar para o chão, ainda com medo de que aquela figura agourenta pulasse sobre ela para fazer-lhe algum mal. Começou a seguir os passos da mãe. Pisou numa fresta. Era só uma fresta agora. Só pisos e frestas. Não tinha mais mágica nas frestas. A mãe apertou a mão de Emília, que olhou para cima.
– Olha pra frente quando anda, Emília! – falou a mãe, jorrando as palavras por entre os dentes cerrados, irritada – Agora presta atenção que a gente vai atravessar a rua. Presta atenção! – e apertou mais uma vez a mão de pequena. Doeu.
Quando a mãe falava assim, Emília ficava magoada. A garganta apertava. Malvada, ela! Às vezes ela era malvada assim. Sem motivo. Parou ao lado da mãe, na beira da calçada, esperando a hora de atravessar a rua. Olhou para frente, como a mãe sempre mandava. Tinha gente do outro lado da rua. Calças e camisas, de cores diferentes. Gente estranha. Tinha também alguns passarinhos nos fios dos postes.
Emília gostava de passarinhos. Eles faziam-na lembrar das historinhas que o pai lia para ela antes de dormir. Gostava das historinhas porque Emília fazia parte delas. Nelas, Emília era uma bonequinha de pano que falava. Emília não entendia direito esse negócio de boneca que fala. Mas mesmo assim achava isso fascinante. Por isso sempre quis uma bonequinha de pano, como a das histórias. E hoje finalmente ganharia uma. Por isso estava feliz. Não, a mãe não era malvada. A mãe era boazinha. Ela ia lhe dar a bonequinha que sempre quis. Emília olhou para cima de novo. Viu aquele rosto familiar, concentrado no semáforo do cruzamento. Era um rosto lindo. Os cabelos cacheados também. Emília gostava do rosto da mãe. Queria ter um igual quando crescesse. Sorriu. Esqueceu do monstro; esqueceu da bronca. Voltou a olhar os passarinhos nos fios dos postes, animada, ansiosa.
Emília não gostou foi do prédio atrás dos postes. Era acinzentado, feio, alto e largo, cheio de janelas escuras, de tamanhos diferentes. Parecia um rosto gigante, repleto de bocas e olhos escuros. Não era como o rosto da mãe. Era feio. De uma daquelas bocas, lá no alto, parecia sair uma língua, pequena à vista. A menina assustou-se por um instante, mas logo percebeu que aquilo era, na verdade, uma pessoa. Uma mulher. E ela estava de vermelho. Tinha uma faixa também vermelha na cabeça e fumava um cigarro. Emília podia distinguir os olhos da mulher, apesar da distância. Estava olhando diretamente para a pequena. Ela não se assustou dessa vez. Ficou curiosa. Continuou olhando a mulher lá em cima, que também continuava a olhá-la.
– O sinal fechou. Vem, filha! – Disse-lhe a mãe, puxando-a pela mão.
A menina desgrudou os olhos dos da mulher da janela no alto do prédio. Voltou a olhar para o chão. Mas não havia estrada. Sob os seus pés corria um rio preto, maligno. Não podia pisar nele, ou suas pernas derreteriam. Por sorte, havia longos blocos brancos enfileirados até a outra margem. O único jeito era ir pulando de bloco em bloco, sem tocar os pés no rio.


II

Nem mesmo a imensidão de tons de cinza à frente, que engolia as pequenas gotas de cores vivas dos carros e das roupas dos transeuntes, conseguia capturar a atenção de Rosa. As imagens do último sonho que tivera continuavam a saltar-lhe à mente. Vira uma cena tenebrosa, em que uma mãe segurava, nos braços encharcados de sangue, a filhinha pequena, morta. A mulher chorava e gritava em direção ao céu, enquanto sua menina vertia mais e mais sangue. Fora uma visão terrível, de fato. Rosa lembrava-se que não tinha sonhos assim desde quando era adolescente. Mas nos últimos tempos eles haviam retornado.
As coisas iam de mal a pior. Rosa não conseguia mais dormir direito, porque tinha medo dos sonhos, e por isso também não conseguia se concentrar. Perdia clientes. Não havia nem se dado ao trabalho de guardar a nota de cinqüenta que Sônia, sua mais fiel cliente – e agora talvez mais uma ex-cliente –, lhe deixara sobre a mesinha, no centro da sala escura e repleta de outros móveis antiguíssimos, herdados de sua avó, uma velha italiana, por quem fora criada e de quem herdara também a arte da cartomancia.
A figura da avó sempre pareceu um tanto assustadora para Rosa, sempre lhe causou grande impressão. Sentia pela velha um misto de carinho, respeito e temor. Fora uma senhora carrancuda, sombria, misteriosa, mas não deixava de ser afetuosa vez por outra. Ensinara a Rosa a cartomancia com firmeza, desde criança, como que lhe demarcando os passos exatos na direção da iluminação própria para o dom premonitório.
Tamanha era a impressão causada pela aura daquela mulher sobre o espírito de Rosa quando jovem, que a moça não duvidava de que a velha possuísse mesmo a capacidade de prever o futuro através das cartas. Porém, ela mesma, Rosa, não sentia que havia algo parecido dentro de si. Aprendera com a avó, sim, a “ler a mente” das pessoas, a identificar exatamente o que estava perturbando alguém só pelo jeito de andar, de falar, de ouvir, de mexer as mãos. Mas não conseguia nada além de fazer considerações genéricas sobre o futuro dos que a consultavam. Contudo, sua avó se mantinha firme, dizia que Rosa deveria permanecer insistindo nas cartas porque uma hora ela conseguiria, uma hora atingiria o ponto necessário de esclarecimento para conseguir não apenas ler as cartas, mas sentir através delas o futuro das pessoas; dizia que os vívidos sonhos que a jovem Rosa freqüentemente tinha eram manifestações do dom da premonição que existia dentro dela e que precisava florescer. Era tudo uma questão de se acreditar ou não.
Acreditar? Rosa não sabia exatamente se acreditava no que fazia, mas se sentia impelida a continuar fazendo aquilo por ter vivido nesse universo a vida inteira, estava acostumada, e também porque sentia uma espécie de dívida para com a avó. Na verdade, ela nem sequer se dava muito a reflexões profundas sobre isso. Quanto aos sonhos, na adolescência Rosa tinha ainda mais medo deles e se recusava a aceitar que eles tivessem a ver com o futuro de outras pessoas, pois eles eram sempre terríveis, violentos. E também, depois, ao ficar mais velha, por algum motivo eles a abandonaram.
Agora, enquanto fumava um cigarro da única janela da salinha escura de seu pequeno apartamento e olhava para a rua, Rosa se perguntava se o retorno desses sonhos não tinha a ver com o recente falecimento de sua avó, havia pouco mais de um ano. Estava angustiada por causa da má situação financeira e por causa da sensação de letargia que a perseguia, proveniente das poucas horas de sono dos últimos meses, quando os sonhos voltaram a molestá-la.
Rosa continuava a olhar para a rua, absorta em pensamentos, quando um pequeno ponto de luz dourada lá embaixo chamou sua atenção. Uma menininha de mãos dadas com alguém, que parecia ser a sua mãe, esperava o sinal fechar para atravessar o cruzamento. A pequeninha tinha cabelos cacheados, bem loiros, e começou a virar o rosto para cima, contemplando o prédio. Então, Rosa pôde ver que a menina olhou-a direto nos olhos e ficou encarando-a por um tempo. Achou engraçado o jeito de a menina olhar. Por um momento, conseguiu se distrair das aflições que perturbavam seu espírito e passou a contemplar aquela figurinha simpática.
O sinal do cruzamento fechou e a mulher puxou a garotinha pela mão. A menina foi seguindo a mãe aos pulinhos, de listra em listra branca da faixa de pedestres. No meio da rua, a mãe deu mais um puxão na criança, fazendo-a parar com os pulinhos. Rosa divertiu-se com a cena. Assim que as duas terminaram de atravessar a rua, a menina soltou a mão da mãe e correu em direção a uma vitrine, parecendo animada e alegre. A mãe seguiu a filha e parou ao lado dela.
Rosa parou de olhar a menina, deu uma longa tragada no cigarro e apagou-o no cinzeiro. A singeleza da cena entre a mãe e a filha a fizera se tranqüilizar um pouco. Mas só até ouvir o som claro de um único tiro vindo lá de baixo, seguido de uma gritaria generalizada. As pessoas saíram correndo como um monte de formigas espantadas, entrando em lojas, se metendo na frente de carros, quase causando acidentes. Rosa espantou-se. A gritaria e a correria aumentavam. A rua inteira estava num movimento frenético de pessoas. Apenas uma mulher permanecia parada no meio da confusão. Rosa a notou. Era uma mulher de cabelos cacheados. Ela olhava para o chão, paralisada. Aos seus pés, uma criança caída.
Foi então que Rosa teve um choque: era a menininha que vira instantes atrás. A mulher em pé era a sua mãe. Esta se agachou e pegou a filha nos braços. Em pouco tempo, os braços da mulher começaram a se encharcar de sangue. O coração de Rosa parou quando aquela mãe, segurando a filha vertendo sangue em seus braços, olhou para o céu e soltou um grito de horror. Era a mesma cena que Rosa vira no sonho que tivera. Estaria delirando? Estaria sonhando acordada?
Rosa afastou-se subitamente da janela, andando de costas, até atingir a mesinha no centro da sala escura. Estacou. Continuou fitando a janela, que agora parecia pertencer a outro mundo. Não, aquilo não podia ser real! Mas os sons da gritaria na rua permaneciam vindo da janela. Dentre os gritos se destacava o da mulher desesperada. Mas, então, aquele sonho havia sido mesmo uma premonição? Sua avó estaria mesmo certa desde o início? E quanto aos outros sonhos? Viriam a se realizar? Já teriam se realizado em algum outro lugar? Aquelas cenas tenebrosas que presenciava em sonho aconteciam a outras pessoas?
Rosa começou a andar de novo em direção à janela, devagar, com medo de ver o que achava que iria ver lá embaixo. Esticou o pescoço e olhou para a rua. Agora já havia uma aglomeração formando um círculo em volta da mulher. Sim, aquela pobre mãe ainda estava lá, segurando sua filhinha morta nos braços. O sangue já escorria pelas frestas dos pisos de concreto da calçada e manchava toda a roupa da mulher, que gritava insanamente em direção ao céu. Aquilo era real, tinha acontecido de fato. Rosa não pôde continuar olhando aquela tragédia que previra em sonho. Virou-se de costas para a janela, levando as mãos à cabeça.
A sensação de ter previsto aquele horror era assombrosa. Por algum motivo, Rosa se sentia culpada, como se aquilo só tivesse acontecido por causa do seu sonho. E se não tivesse sonhado? Meu Deus, como conviver com essa tenebrosa maldição, a de prever o destino trágico de pessoas? Como sua avó conseguia? Então Rosa levantou os olhos em direção à mesinha no centro da sala. Seu corpo todo gelou: lá estava a velha, sentada na cadeira da cartomante, de costas para a janela, embaralhando as cartas de tarô.
Movida por uma atração de origem totalmente desconhecida, Rosa foi andando em direção à sua avó. Parou pouco antes de chegar ao seu lado. A velha permaneceu imperturbável, embaralhando as cartas, até tirar uma do monte e vira-la sobre a mesinha: o décimo terceiro Arcano Maior.


III

Álvaro estava desolado. Não agüentou ver aquela cena chocante por muito tempo. Imaginou-se na pele daquela mulher, segurando sua filha pequenininha morta tão tragicamente. Saiu andando rápido, zonzo. Sentia náuseas. Mal compreendera o que havia acabado de se passar. Lembrou-se de que não tinha pagado o café que bebera numa lanchonete ali perto, mas nem pensou em voltar lá. Só o que queria era voltar para a casa e ver a filha. Chegou a olhar para trás, para ver se aquela menininha ensangüentada na calçada não era a sua. Não era, graças a Deus!
A confusão era grande ao seu redor, mas Álvaro não conseguia ouvir nada. Seus ouvidos zumbiam por causa da pressão baixa. Estava prestes a desmaiar. Parou e encostou-se na parede do prédio ao seu lado, para não cair. Respirou fundo. Sua filha estava em casa, estava a salvo. Queria correr para a casa, mas suas pernas tremiam e não obedeciam a seus comandos. Que coisa horrível! Álvaro olhou ao redor. Sua visão ainda estava meio embaralhada, só conseguia ver vultos passando rápidos de um lado para o outro. Suava frio. Abaixou a cabeça e respirou fundo mais uma vez. Sua filha estava em casa, com a mãe, ajudando no almoço. Tudo ficaria bem.
Começou a melhorar. A visão voltara ao normal. Recuperou o fôlego: era a hora de ir, não suportava mais ficar no meio daquilo. Já podia ouvir o som de sirenes se aproximando. Álvaro deu mais uma olhada para trás. A mulher ainda estava lá, no meio do aglomerado, gritando aos céus com a filhinha nos braços. Que cena! Que terror! Mas a sua filha estava em casa, graças a Deus!
De repente, um raio vermelho corta verticalmente a visão de Álvaro, seguido de um baque estrondoso contra o concreto da calçada. Levou um susto tremendo, que deixou-o desnorteado por um instante. Álvaro arregalou os olhos. A menos de cinco passos à sua frente, com um longo vestido vermelho, espatifada na caçada, estava uma mulher. Ficou paralisado, incrédulo. Logo depois, para o completo estarrecimento de Álvaro, começa uma chuva de cartas de tarô.

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(Um exercício para a disciplina de Expressão Escrita II do curso de Cinema da UFSC)

domingo, 25 de setembro de 2011

A papagaiar

É a época da flacidez. Flacidez dos termos. O que gera a flacidez também dos discursos. Quando me vêm com “capitalismo”, “neoliberalismo”, “alienação”, “consumismo”, “crítica”, etc., já desconfio. Aliás, mais que desconfio, preconceituo. Preconceituo francamente, sem remorso: “Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem do que falam”, penso comigo.

Mas pode piorar. Podem vir com “amor” e “felicidade”, “certo” e “errado”, “sinceridade” e “falsidade”, e sei lá mais o quê. Aí chego às raias da completa indiferença.

Não, não arrogo o conhecimento exato dos significados dos termos acima. Mesmo porque não acredito em significados últimos. É corolário da descrença em Deus – e em toda a metafísica – a descrença também em significados últimos, essenciais da linguagem. Prefiro as significâncias, ou as práticas significantes, à la Barthes. Gosto de não conhecer a essência das coisas, ou melhor, de não ter interesse nela. Prefiro a aparência. Por que não a aparência?

Mas pode piorar ainda mais. Podem vir com frases feitas. Podem vir com discursos recheados de lugares-comuns, fazendo pose de artistas apaixonados, literatos inspirados, espíritos livres. Fujamos disso. Eu fujo. Se por muito tempo teimo continuar a ouvir bobagens desse tipo, minha alma sofre de uma dispepsia aguda. Aí sofro. Tenho dó de mim. Tenho dó de nós, os que comigo compactuam com essa alergia dos ouvidos. Tenham dó de nós vocês também, ó caros papagaios de frases de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu* via Facebook e Twitter. Poupem-nos.

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Papagaiando Nietzsche (pra não passar sem a minha dose de hipocrisia “demasiado humana”):

Perdoem-me a brincadeira dessa caricatura e expressão sombria: pois eu mesmo aprendi há muito a pensar de outro modo, a avaliar de outra maneira o enganar e o ser enganado, e guardo ao menos alguns socos para a fúria cega com que os filósofos resistem a ser enganados. Por que não? Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a aparência; é inclusive a suposição mais mal demonstrada que já houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso entusiasmo e a rudeza de tantos filósofos, quisesse abolir por inteiro o "mundo aparente", bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo – também da sua "verdade" não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre "verdadeiro" e "falso"?
Além do Bem e do Mal, 34.

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*Calma. Gosto de Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. Só não gosto que muitos escolham reproduzir destes justo as frases que, sem o peso do contexto, são as mais voláteis. Pode voltar a não me odiar completamente.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Passa, passa, passa, passa, passageiro.

A memória me frustra. A cada dia que passa parece que o dia anterior não aconteceu de verdade. Parece uma coisa qualquer, distante, sem força. Será que adianta fazer o que estou fazendo agora? Que diferença isso realmente fará daqui uns anos? Umas semanas? Amanhã?! O quanto disso sobreviverá o bastante pra fazer qualquer diferença na hora em que eu estiver em frente a uma guria, pensando se devo beijá-la ou simplesmente virar as costas e dar o fora, ou na hora de decidir sobre fumar ou não um cigarro, ou de fumar dois ou um maço inteiro, ou na hora de decidir se durmo ou termino a garrafa de vinho? 

Lembro-me muito pouco de ontem. Lembro-me de que senti muitas coisas; algumas, na hora em que as senti, pensei serem realmente importantes, coisas deveras mudadoras de vida, mas, por mais que me esforce, não consigo me lembrar que merda de coisas foram essas! A impressão é de que o tempo arranca meu presente, meu agora, de debaixo de minhas unhas, do céu da minha boca, direto pra um passado distante, amorfo, incolor, inodoro, me deixando com fome de qualquer coisa, doente de qualquer coisa, com dor de qualquer coisa, que não passa. Não passa. Só o tempo passa. E eu: passarinho? Passageiro.

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"Eu acordo com uma ressaca guerra.
Explode na cabeça,
E eu me rendo a mais um milagroso dia"

Mar de gente - O Rappa

sábado, 30 de abril de 2011

Gaguejar de um inveterado (conto à la Nuno Ramos)

Ela está chegando. Vai acabar comigo, como sempre. Tenho certeza. Vai me derrubar, rasgar minha carne, esparramar minhas vísceras e incinerá-las, mais uma vez, como sempre. Minha vida inteira lutei contra ela – em vão. Já deve estar no meu quarto a essa hora. Na verdade, nunca sei exatamente onde ela está: me seguindo, ou me vigiando de longe, ou me esperando na próxima esquina, ou num beco sem-saída, na escuridão. É, ela pode estar no meu quarto agora. Ou me esperando à porta do trabalho. Talvez escondida no armário. Ou depois da curva logo ali à frente. Ou espreitando atrás de mim. Ou em todos os lugares ao mesmo tempo. Ela já chegou? Sempre esteve? Já me deixou alguma vez? Sou dono dela ou ela de mim? Ela vai aparecer, tenho certeza, e vai me derrubar e me sufocar e espremer meus olhos e abrir meus pulmões e costurar minhas veias e arrancar meus cabelos fio a fio, mais uma vez – como sempre.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Nos embalos de sábado à noite (conto)

Não dava pra dormir. Simplesmente não dava. Aquele apartamento minúsculo oprimia todos os meus sentidos, todos os meus instintos, todas as minhas aspirações. Peguei um copo plástico sujo, lavei rapidamente com água e misturei vodka com água. Precisava amortecer meus sentidos. Bebi olhando pela janela; olhava a lua, as estrelas, as nuvens, mas não via nada. Fiquei observando o nada.

Que merda. Eu tava cansado daquilo. Tudo na minha vida era um nada: um nada de sentido, um nada de intensidade, um nada de objetivos. Senti-me um amaldiçoado; o filho mais odiado de Deus; o rebento mais degenerado do universo. Entornei o copo. Preparei outro. Entornei. Preparei mais um. Já começava a sentir um entorpecimento agradável. Eram duas da manhã e uma inquietação começou a crescer em mim; aquela maldita inquietação, uma sensação estranha que já me perturbava por um bom tempo. Era uma sensação de medo, misturada a uma ânsia de sair atravessando paredes à força, colocando a baixo todo aquele prédio infestado de humanos degenerados, frios, hipócritas, molengas, patéticos, odiosos. Sempre que isso acontecia, eu me lembrava da minha arma. Ela estava em cima da cama, descarregada. Peguei-a.

Eu apertava com força minha 9mm na mão direita. Apontava-a pras janelas dos outros prédios e puxava o gatilho. Sentia uma sensação de poder, de raiva; era ótimo. O medo parecia ir embora – mas estaria indo de verdade? Não. Era outra coisa. Na verdade era como se aquele medo se refinasse, se diluísse e se lançasse em minha corrente sanguínea, transformado em puro instinto explosivo que quer responder a qualquer sentimento de coerção com a represália mais forte que se pode produzir.

Senti um arrepio pela nuca que se estendeu só até ao lado esquerdo da cabeça. Minha visão periférica captou – ou teria imaginado? – um vulto passando pela janela que ficava bem de frente pra minha, no prédio vizinho. Virei os olhos naquela direção. As pernas gelaram e deram uma rápida tremida. “É ilusão, João. Tu tá ficando louco”. Apontei a arma pra janela, rangi os dentes e puxei o gatilho; aquele medo depurado ainda ardendo no meu sangue. Virei-me pra porta, assustado, como se alguém fosse entrar por ela se eu não ficasse olhando. “Isso é loucura. Chega!”. Fechei a janela, a cortina, coloquei minha única cadeira em frente à porta. Deitei na cama e entornei o copo de vodka com água. Joguei o copo contra a parede, peguei a garrafa e comecei a beber no gargalo; a arma ainda na mão. Aquele silêncio mórbido era torturante. Vida maldita! Liguei a TV e aumentei bastante o volume.

Na tela apareciam os mesmos idiotas de sempre, fazendo suas mesmas idiotices de sempre; tão supérfluos, tão improfícuos e irrisórios mentalmente quanto era a minha vida. Enojava-me ver toda aquela porcaria. No entanto eu continuava ali, encarando as cores na tela, quase sem piscar, bebendo e puxando mecanicamente o gatilho da 9mm na mão direita, com o braço estendido junto à perna.

De repente apavorei-me – teriam batido na porta? O coração disparou. Um súbito calor se espalhou pelo rosto e peito, chegando até os ombros, e um frio subiu pelo abdômen. Teria eu imaginado coisas novamente? Fiquei fitando a maçaneta. Olhos arregalados. Então ouvi claramente uma segunda batida; um único soco, forte e decidido, com os nós dos dedos, fazendo a porta toda tremer. Saltei da cama impulsivamente. A arma na mão direita e a garrafa na esquerda. Andei bem devagar e sem fazer barulho até a cadeira, coloquei a garrafa em cima dela e afastei-a com cuidado. Aproximei-me pra olhar pelo olho-mágico. O coração parecia querer explodir peito a fora e fugir dali; minhas pernas também. Mas algo como uma curiosidade de origem inominável, algo que parecia ter um prazer masoquista em me atirar no fogo me fez ir em frente e ver quem – ou o que – estaria do outro lado.

Então olhei – e não pude crer nos meus olhos. Era aquela doida, aquela vaca da Joana! Que diabos aquilo significava? Hesitei. Abriria a porta ou não? Tudo ficou confuso. Senti um desejo irracional de sair dali; depois de xingá-la, perguntar o que ela queria, mandá-la embora, sei lá! Mas, por algum motivo que nunca consegui decifrar, simplesmente destravei todas as trancas, girei a chave e abri a porta.

Joana, aquela maldita, que eu nunca antes havia visto de outro jeito senão divinamente bem vestida, sexy, linda, sempre arrogante e malcriada, agora ali, parada na minha frente com um jeans surrado, uma blusa branca manchada de óleo, descalça, com uma maquiagem que parecia borrada já havia uns três dias, aqueles cabelos loiros todos desgrenhados, olhos vermelhos e o rosto úmido. Senti uma espécie de arrepio, um arrepio quente. Não sei se queria simplesmente perguntá-la que diabos ela queria, ou pegá-la pelo braço com toda a minha força, arrastá-la pelo corredor e atirá-la escada abaixo; ou ainda se queria agarrá-la, arrancar-lhe as roupas e traçá-la ali mesmo, no corredor.

Mas não consegui fazer nada, nem falar nada. Simplesmente fiquei ali parado, olhando-a nos olhos, sem piscar. Só uns três segundos depois que consegui perceber a expressão facial com que ela me olhava de volta. Uma expressão estranha; tinha algo de débil, de raivoso, de triste. Então continuamos ali, imóveis, sem fazer som algum, encarando um ao outro por um longo tempo, que poderia ter sido dez segundos ou dez minutos, sei lá. Eu não sabia o que eu estava sentindo naquele momento, menos ainda que tipo de expressão facial toda aquela confusão mental me fazia exprimir. Não conseguia desviar meus olhos dos dela; algum tipo de tensão ou medo me impedia; ou talvez porque simplesmente fosse gostoso ficar olhando bem no fundo daqueles olhos castanho-claros, quase verdes, e que agora tinham um quê a mais de selvagem, de ameaçador: parecia que ela despia minha alma com os olhos – e a fritava ao mesmo tempo.

De repente ela voltou os olhos pra baixo num único movimento e notou a arma na minha mão. Voltou a me olhar nos olhos, agora com uma expressão de espanto e raiva já começando a surgir mais definidamente em seu rosto. Fiquei atônito. Pensei que ela sairia correndo, ou soltaria um grito, ou que falasse alguma coisa – mas não, ficou ali me oferecendo aquela expressão furiosa, triste, doentia. Seu queixo começou a contrair-se e a tremer cada vez mais, apertou os lábios com força, franziu ainda mais a testa, parecia estar prestes a chorar ou a vomitar todos os tipos de insultos e palavrões contra mim.

Ao invés disso, ela começou a levantar o braço direito lentamente, com cuidado, quase de maneira de maneira solene, e o esticou totalmente na minha direção, quase tocando no meu nariz com a… mão? – não, aquilo não era uma mão, era uma .357 totalmente carregada! Aquela puta tava apontando um revólver bem pro meio da minha cara! Não desgrudei meus olhos dos dela nem por um segundo e consegui notar suas roupas, suas expressões, mas não tinha notado até agora a porra da arma que provavelmente ela tava carregando na mão esse tempo todo! Como?!

Pânico. Fiquei em pânico, em choque; senti todo o meu corpo gelar, as pernas tremeram, arrepios de todos os tipos atravessaram meu corpo, o coração chegava a doer de tão forte e acelerado que pulsava. Ainda olhava nos olhos dela, todo o resto, inclusive a arma apontada pro meu nariz eu via apenas perifericamente – eu sabia que ela ia atirar. Por um instante pensei que a minha hora havia chegado; no instante seguinte queria matá-la, estrangular a maldita com as próprias mãos; depois queria sair correndo e me atirar pela janela, só pra não ter de morrer daquele jeito ridículo; depois quis avançar em cima dela, tirar-lhe a arma e explodir-lhe os miolos – ou beijá-la à força e apertar aquela cintura linda; num outro instante já queria que tudo acabasse de uma vez, que não seria tão ruim ter o cérebro atravessado por uma bala pra acabar de vez com aquela vida desgraçada. Senti tudo isso misturado, indo e voltando, sem definição.

Então notei que a mão dela tremia, e que provavelmente já tremia havia algum tempo, mas que só agora tinha conseguido me tirar daquele delírio insano e pavoroso; eu tinha mergulhado naquela confusão, naquele turbilhão de fortes impulsos, enquanto mergulhava também no profundo castanho daqueles olhos, e por isso não tinha notado sequer a mudança de expressão facial dela, nem mesmo as lágrimas que agora corriam pela sua bochecha. O rosto dela começou a se deformar, a tomar uma aparência estranha; era raiva, era tristeza, era dor, era espanto, era… não sei o que era. Ela começou a recuar alguns passos. Agora todo o seu braço tremia e ela soluçava, chorando agora sem mais se conter. Começou a baixar a arma, até na altura da minha cintura. Por uma fração de segundo, consegui emergir de todo aquela loucura e pensar: “essa mulher é mesmo muito doida, eu sempre soube”. Mas logo o pânico voltou, com a dúvida de que merda que aquela maluca infeliz faria agora.

Ela ficou ali, me olhando e soluçando, porém agora menos intensamente. De repente baixou a cabeça. A arma ainda apontada pra mim. Percebi que ela não ia fazer nada e me senti até um tanto idiota por ter me apavorado daquele jeito. Mas ela tava com uma arma carregada e apontada pra minha cara, com o dedo no gatilho, parecendo uma louca, o que mais eu ia pensar? Comecei a me acalmar. Ela começou a parar de chorar, a ficar mais quieta, e parecia mais calma também. Agora que os olhos dela não mais me prendiam, consegui olhá-la melhor, olhar aquele corpo lindo, aquela pele branquinha, lisinha, as mãozinhas delicadas, os pezinhos pequenininhos, a curva perfeita da cintura; mesmo naquele estado deplorável ela continuava linda e gostosa.

Então ela levou a outra mão à arma, ainda apontada pra minha cintura, levantou a cabeça e soluçou mais uma vez. Agora já tinha uma expressão de nada, impassível, mas quase derreteu meus olhos com um olhar ainda mais fulminante do que antes. Inspirou fortemente, como quem está prestes a falar, e abriu suavemente um pouco a boca. Finalmente aquela doida ia desembuchar! Ela disse:

– …

Não disse nada! Mas eu tinha ouvido algo; o que fora? Foi um estampido forte – sim, sim, foi um tiro! Sim, tinha fumaça saindo da boca do cano da .357 – foi um tiro! Aquela doida, aquela filha da puta tinha atirado, bem no meio do corredor, bem na minha direção! Teria me acertado? Eu não sabia, não consegui desviar os olhos dos dela; um medo se apoderou de mim, um frio na espinha, um pavor terrível. O universo inteiro parou um instante. Não tive coragem de olhar pro meu corpo, mas também não sentia dor alguma. Ela continuou me olhando com aquela expressão impassível, enigmática, porém fechara a boca, aquela boca sexy, carnuda, linda, e que curiosamente, mesmo em meio àquele imenso furacão de pânico e loucura, por um segundo conseguiu desviar minha atenção de tudo e até mesmo me deixar um tanto excitado; mas só até eu começar a sentir uma coisa quente escorrer pela coxa esquerda.

De repente a coxa inteira começou a ficar dormente, e depois começou a arder, e arder mais, e a queimar, transformando-se numa dor excruciante. Olhei e vi que tinha sido atingido na coxa esquerda. Aquela vadia desgraçada atirou em mim! Claro que naquele momento não percebi que tinha sido um tiro de raspão, apesar de ter tirado uma boa lasca de carne da parte de fora da coxa, mas não consegui conter um grunhido de dor. Levei minhas mãos à perna, ainda segurando minha 9mm, comecei a me curvar e caí sobre o joelho direito. “Sua filha-da-puta!”, gritei finalmente praquela vadia, olhando pra todo aquele sangue escorrendo, enquanto ela deixou a arma cair bem na minha frente. Levantei a cabeça pra lançar-lhe mais alguns impropérios, mas ela já andava em direção às escadas, devagar, com passinhos bem pequenos e irregulares, cambaleando de uma parede à outra.

Já ouvia-se uma comoção através das portas dos outros apartamentos ao longo corredor, que parecia ser mais largo que meu próprio quarto. Olhei pra arma que ela deixou cair na minha frente. Já não sentia mais nada além daquela dor irritante. Levantei, manquei uns dois passos, peguei a .357 daquela doida da Joana, que já tinha sumido pelas escadas, entrei no quarto e tranquei a porta. Joguei as duas armas no chão, peguei a garrafa de cima da cadeira e arrastei a perna até a cama, deixando um rastro de sangue pelo chão e pelos lençóis velhos e manchados. Olhei pra TV. Aqueles idiotas continuavam lá. Percebi que, desde que aquela doida batera à minha porta, em nenhum momento eu notei o barulho da TV, mesmo estando tão alto. Grande merda! Tomei uns três goles de vodka. Depois mais três. Depois mais, mais. A dor começava a passar. Lá se fora mais um sábado.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Som e Fúria


Que tragédia! A vida é mesmo uma tragédia. Um palco onde os heróis gritam e dançam, e os utopistas choram e rangem os dentes; onde os heróis cospem na cara dos idealistas chorões, cantam, pavoneiam, se ferem, ferem outros, correm de um lado ao outro, sofrem e se alegram sem medo ou ilusões, corajosamente; onde os utopistas derramam suas lágrimas sobre os cacos frustrados de suas ideologias absurdas e ressentidas, enquanto invejam a euforia alegre dos fortes. No fim, o que acontece? Nada – não se fecham cortinas ou apagam-se luzes. Mas, como num passe de mágica, num piscar de olhos, heróis e tolos, protagonistas e coadjuvantes, bestas e vermes, corajosos e covardes, belos e feios, todos caem mortos e desaparecem: um bando de tragos caminhando em direção ao sacrifício – então nada mais é ouvido; todo aquele som e fúria de heróis e deuses esmaece, todas aquelas lágrimas de covardes e fracos desaparecem; os próprios atores deixam de existir. O que? Não houve sentido em tudo aquilo? Mas as Moiras só têm um olho…

"Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day,
To the last syllable of recorded time;
And all our yesterdays have lighted fools
The way to dusty death. Out, out, brief candle!
Life's but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing"
Macbeth - Ato 5, Cena 5

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Renan? pfff... Vincent Vega!


“Digamos então, audaciosamente, que a religião é produto do homem normal, que o homem está mais próximo à verdade quando é mais religioso e mais seguro de um destino infinito… É quando ele contempla as coisas de maneira desinteressada que ele acha a morte revoltante e absurda. Como não supor que é nesses momentos que se enxerga melhor?” Ernest Renan, L’avenir religieux des sociétés modernes, 1860.

Ãhn?!

Jules Winnfield e Vincent Vega:

J: – This was divine intervention. You know what divine intervention is?

V: – I think so… that means that God came down from heaven and stopped the bullets?

J: – That’s right! That’s exactly what it means. God came down from heaven and stopped these motherfucking bullets.

V: – … I think is time for us to leave, Jules.

J: – Don’t do that! Don’t fucking blow this shit off! What just happened here was a fucking miracle!

V: – Chill, Jules. This shit happens.

J: – Wrong! Wrong. This shit doesn’t just happen.

V: – Do you wanna continue this theological discussion in the car or in the jailhouse with the cops?

J: – We should be fucking dead, my friend. What happened here was a miracle and I want you to fucking acknowledge it.

V: – Alright, it was a miracle… can we go now?

rs…




“I’m a mushroom cloud-layin’ motherfucker, motherfucker!”