terça-feira, 11 de outubro de 2011

O décimo terceiro Arcano Maior


I

Não podia pisar nas frestas. Não podia. Havia algo de mágico nelas. Se pisasse, lhe cortariam a sola do pé. Precisava pular as frestas, de piso em piso. Piso cinza. Cor de concreto. Assim não teria o pé cortado. Estava feliz. De repente, uma calça jeans. E o esbarrão.
– Olha pra frente, minha filha! – disse a mãe, cansada de repetir a frase – Que coisa!
Atordoada, Emília olhou para cima. Sobre a calça jeans, uma camisa branca, suada. Da camisa saía um pescoço marrom, cheio de vincos, que sustentava um rosto enrugado, tão marrom quanto, oleoso. Era um rosto horrível, abominável. Estava olhando para Emília. Aquele rosto horroroso sorriu; contorceu-se ainda mais, mostrando uma fileira desconjuntada de dentes muito amarelos e muito úmidos. Emília sentiu-se repugnada com a visão daquilo. Era um homem velho. No entanto, mais parecia um monstro.
– Cuidado, mocinha – disse o monstro, estendendo a mão em direção à cabeça de Emília. Era uma mão ainda mais horrível que o rosto, e enorme. Parecia uma aranha gigante. Parecia um monstro horrível, marrom, com horríveis mãos de aranha gigante. Emília agarrou-se à mãe, fugindo daquela aranha nojenta. Seu coraçãozinho disparou de medo. A barriga ficou fria. Apertou a mão quente que segurava na sua, a mão da mãe. Esta pediu desculpas ao monstro pela desastrada da filha e seguiu andando, puxando a pequena, que não parava de fitar o pobre homem abatido pelo calor que fazia.
Emília desviou os olhos daquilo. Voltou a olhar para o chão, ainda com medo de que aquela figura agourenta pulasse sobre ela para fazer-lhe algum mal. Começou a seguir os passos da mãe. Pisou numa fresta. Era só uma fresta agora. Só pisos e frestas. Não tinha mais mágica nas frestas. A mãe apertou a mão de Emília, que olhou para cima.
– Olha pra frente quando anda, Emília! – falou a mãe, jorrando as palavras por entre os dentes cerrados, irritada – Agora presta atenção que a gente vai atravessar a rua. Presta atenção! – e apertou mais uma vez a mão de pequena. Doeu.
Quando a mãe falava assim, Emília ficava magoada. A garganta apertava. Malvada, ela! Às vezes ela era malvada assim. Sem motivo. Parou ao lado da mãe, na beira da calçada, esperando a hora de atravessar a rua. Olhou para frente, como a mãe sempre mandava. Tinha gente do outro lado da rua. Calças e camisas, de cores diferentes. Gente estranha. Tinha também alguns passarinhos nos fios dos postes.
Emília gostava de passarinhos. Eles faziam-na lembrar das historinhas que o pai lia para ela antes de dormir. Gostava das historinhas porque Emília fazia parte delas. Nelas, Emília era uma bonequinha de pano que falava. Emília não entendia direito esse negócio de boneca que fala. Mas mesmo assim achava isso fascinante. Por isso sempre quis uma bonequinha de pano, como a das histórias. E hoje finalmente ganharia uma. Por isso estava feliz. Não, a mãe não era malvada. A mãe era boazinha. Ela ia lhe dar a bonequinha que sempre quis. Emília olhou para cima de novo. Viu aquele rosto familiar, concentrado no semáforo do cruzamento. Era um rosto lindo. Os cabelos cacheados também. Emília gostava do rosto da mãe. Queria ter um igual quando crescesse. Sorriu. Esqueceu do monstro; esqueceu da bronca. Voltou a olhar os passarinhos nos fios dos postes, animada, ansiosa.
Emília não gostou foi do prédio atrás dos postes. Era acinzentado, feio, alto e largo, cheio de janelas escuras, de tamanhos diferentes. Parecia um rosto gigante, repleto de bocas e olhos escuros. Não era como o rosto da mãe. Era feio. De uma daquelas bocas, lá no alto, parecia sair uma língua, pequena à vista. A menina assustou-se por um instante, mas logo percebeu que aquilo era, na verdade, uma pessoa. Uma mulher. E ela estava de vermelho. Tinha uma faixa também vermelha na cabeça e fumava um cigarro. Emília podia distinguir os olhos da mulher, apesar da distância. Estava olhando diretamente para a pequena. Ela não se assustou dessa vez. Ficou curiosa. Continuou olhando a mulher lá em cima, que também continuava a olhá-la.
– O sinal fechou. Vem, filha! – Disse-lhe a mãe, puxando-a pela mão.
A menina desgrudou os olhos dos da mulher da janela no alto do prédio. Voltou a olhar para o chão. Mas não havia estrada. Sob os seus pés corria um rio preto, maligno. Não podia pisar nele, ou suas pernas derreteriam. Por sorte, havia longos blocos brancos enfileirados até a outra margem. O único jeito era ir pulando de bloco em bloco, sem tocar os pés no rio.


II

Nem mesmo a imensidão de tons de cinza à frente, que engolia as pequenas gotas de cores vivas dos carros e das roupas dos transeuntes, conseguia capturar a atenção de Rosa. As imagens do último sonho que tivera continuavam a saltar-lhe à mente. Vira uma cena tenebrosa, em que uma mãe segurava, nos braços encharcados de sangue, a filhinha pequena, morta. A mulher chorava e gritava em direção ao céu, enquanto sua menina vertia mais e mais sangue. Fora uma visão terrível, de fato. Rosa lembrava-se que não tinha sonhos assim desde quando era adolescente. Mas nos últimos tempos eles haviam retornado.
As coisas iam de mal a pior. Rosa não conseguia mais dormir direito, porque tinha medo dos sonhos, e por isso também não conseguia se concentrar. Perdia clientes. Não havia nem se dado ao trabalho de guardar a nota de cinqüenta que Sônia, sua mais fiel cliente – e agora talvez mais uma ex-cliente –, lhe deixara sobre a mesinha, no centro da sala escura e repleta de outros móveis antiguíssimos, herdados de sua avó, uma velha italiana, por quem fora criada e de quem herdara também a arte da cartomancia.
A figura da avó sempre pareceu um tanto assustadora para Rosa, sempre lhe causou grande impressão. Sentia pela velha um misto de carinho, respeito e temor. Fora uma senhora carrancuda, sombria, misteriosa, mas não deixava de ser afetuosa vez por outra. Ensinara a Rosa a cartomancia com firmeza, desde criança, como que lhe demarcando os passos exatos na direção da iluminação própria para o dom premonitório.
Tamanha era a impressão causada pela aura daquela mulher sobre o espírito de Rosa quando jovem, que a moça não duvidava de que a velha possuísse mesmo a capacidade de prever o futuro através das cartas. Porém, ela mesma, Rosa, não sentia que havia algo parecido dentro de si. Aprendera com a avó, sim, a “ler a mente” das pessoas, a identificar exatamente o que estava perturbando alguém só pelo jeito de andar, de falar, de ouvir, de mexer as mãos. Mas não conseguia nada além de fazer considerações genéricas sobre o futuro dos que a consultavam. Contudo, sua avó se mantinha firme, dizia que Rosa deveria permanecer insistindo nas cartas porque uma hora ela conseguiria, uma hora atingiria o ponto necessário de esclarecimento para conseguir não apenas ler as cartas, mas sentir através delas o futuro das pessoas; dizia que os vívidos sonhos que a jovem Rosa freqüentemente tinha eram manifestações do dom da premonição que existia dentro dela e que precisava florescer. Era tudo uma questão de se acreditar ou não.
Acreditar? Rosa não sabia exatamente se acreditava no que fazia, mas se sentia impelida a continuar fazendo aquilo por ter vivido nesse universo a vida inteira, estava acostumada, e também porque sentia uma espécie de dívida para com a avó. Na verdade, ela nem sequer se dava muito a reflexões profundas sobre isso. Quanto aos sonhos, na adolescência Rosa tinha ainda mais medo deles e se recusava a aceitar que eles tivessem a ver com o futuro de outras pessoas, pois eles eram sempre terríveis, violentos. E também, depois, ao ficar mais velha, por algum motivo eles a abandonaram.
Agora, enquanto fumava um cigarro da única janela da salinha escura de seu pequeno apartamento e olhava para a rua, Rosa se perguntava se o retorno desses sonhos não tinha a ver com o recente falecimento de sua avó, havia pouco mais de um ano. Estava angustiada por causa da má situação financeira e por causa da sensação de letargia que a perseguia, proveniente das poucas horas de sono dos últimos meses, quando os sonhos voltaram a molestá-la.
Rosa continuava a olhar para a rua, absorta em pensamentos, quando um pequeno ponto de luz dourada lá embaixo chamou sua atenção. Uma menininha de mãos dadas com alguém, que parecia ser a sua mãe, esperava o sinal fechar para atravessar o cruzamento. A pequeninha tinha cabelos cacheados, bem loiros, e começou a virar o rosto para cima, contemplando o prédio. Então, Rosa pôde ver que a menina olhou-a direto nos olhos e ficou encarando-a por um tempo. Achou engraçado o jeito de a menina olhar. Por um momento, conseguiu se distrair das aflições que perturbavam seu espírito e passou a contemplar aquela figurinha simpática.
O sinal do cruzamento fechou e a mulher puxou a garotinha pela mão. A menina foi seguindo a mãe aos pulinhos, de listra em listra branca da faixa de pedestres. No meio da rua, a mãe deu mais um puxão na criança, fazendo-a parar com os pulinhos. Rosa divertiu-se com a cena. Assim que as duas terminaram de atravessar a rua, a menina soltou a mão da mãe e correu em direção a uma vitrine, parecendo animada e alegre. A mãe seguiu a filha e parou ao lado dela.
Rosa parou de olhar a menina, deu uma longa tragada no cigarro e apagou-o no cinzeiro. A singeleza da cena entre a mãe e a filha a fizera se tranqüilizar um pouco. Mas só até ouvir o som claro de um único tiro vindo lá de baixo, seguido de uma gritaria generalizada. As pessoas saíram correndo como um monte de formigas espantadas, entrando em lojas, se metendo na frente de carros, quase causando acidentes. Rosa espantou-se. A gritaria e a correria aumentavam. A rua inteira estava num movimento frenético de pessoas. Apenas uma mulher permanecia parada no meio da confusão. Rosa a notou. Era uma mulher de cabelos cacheados. Ela olhava para o chão, paralisada. Aos seus pés, uma criança caída.
Foi então que Rosa teve um choque: era a menininha que vira instantes atrás. A mulher em pé era a sua mãe. Esta se agachou e pegou a filha nos braços. Em pouco tempo, os braços da mulher começaram a se encharcar de sangue. O coração de Rosa parou quando aquela mãe, segurando a filha vertendo sangue em seus braços, olhou para o céu e soltou um grito de horror. Era a mesma cena que Rosa vira no sonho que tivera. Estaria delirando? Estaria sonhando acordada?
Rosa afastou-se subitamente da janela, andando de costas, até atingir a mesinha no centro da sala escura. Estacou. Continuou fitando a janela, que agora parecia pertencer a outro mundo. Não, aquilo não podia ser real! Mas os sons da gritaria na rua permaneciam vindo da janela. Dentre os gritos se destacava o da mulher desesperada. Mas, então, aquele sonho havia sido mesmo uma premonição? Sua avó estaria mesmo certa desde o início? E quanto aos outros sonhos? Viriam a se realizar? Já teriam se realizado em algum outro lugar? Aquelas cenas tenebrosas que presenciava em sonho aconteciam a outras pessoas?
Rosa começou a andar de novo em direção à janela, devagar, com medo de ver o que achava que iria ver lá embaixo. Esticou o pescoço e olhou para a rua. Agora já havia uma aglomeração formando um círculo em volta da mulher. Sim, aquela pobre mãe ainda estava lá, segurando sua filhinha morta nos braços. O sangue já escorria pelas frestas dos pisos de concreto da calçada e manchava toda a roupa da mulher, que gritava insanamente em direção ao céu. Aquilo era real, tinha acontecido de fato. Rosa não pôde continuar olhando aquela tragédia que previra em sonho. Virou-se de costas para a janela, levando as mãos à cabeça.
A sensação de ter previsto aquele horror era assombrosa. Por algum motivo, Rosa se sentia culpada, como se aquilo só tivesse acontecido por causa do seu sonho. E se não tivesse sonhado? Meu Deus, como conviver com essa tenebrosa maldição, a de prever o destino trágico de pessoas? Como sua avó conseguia? Então Rosa levantou os olhos em direção à mesinha no centro da sala. Seu corpo todo gelou: lá estava a velha, sentada na cadeira da cartomante, de costas para a janela, embaralhando as cartas de tarô.
Movida por uma atração de origem totalmente desconhecida, Rosa foi andando em direção à sua avó. Parou pouco antes de chegar ao seu lado. A velha permaneceu imperturbável, embaralhando as cartas, até tirar uma do monte e vira-la sobre a mesinha: o décimo terceiro Arcano Maior.


III

Álvaro estava desolado. Não agüentou ver aquela cena chocante por muito tempo. Imaginou-se na pele daquela mulher, segurando sua filha pequenininha morta tão tragicamente. Saiu andando rápido, zonzo. Sentia náuseas. Mal compreendera o que havia acabado de se passar. Lembrou-se de que não tinha pagado o café que bebera numa lanchonete ali perto, mas nem pensou em voltar lá. Só o que queria era voltar para a casa e ver a filha. Chegou a olhar para trás, para ver se aquela menininha ensangüentada na calçada não era a sua. Não era, graças a Deus!
A confusão era grande ao seu redor, mas Álvaro não conseguia ouvir nada. Seus ouvidos zumbiam por causa da pressão baixa. Estava prestes a desmaiar. Parou e encostou-se na parede do prédio ao seu lado, para não cair. Respirou fundo. Sua filha estava em casa, estava a salvo. Queria correr para a casa, mas suas pernas tremiam e não obedeciam a seus comandos. Que coisa horrível! Álvaro olhou ao redor. Sua visão ainda estava meio embaralhada, só conseguia ver vultos passando rápidos de um lado para o outro. Suava frio. Abaixou a cabeça e respirou fundo mais uma vez. Sua filha estava em casa, com a mãe, ajudando no almoço. Tudo ficaria bem.
Começou a melhorar. A visão voltara ao normal. Recuperou o fôlego: era a hora de ir, não suportava mais ficar no meio daquilo. Já podia ouvir o som de sirenes se aproximando. Álvaro deu mais uma olhada para trás. A mulher ainda estava lá, no meio do aglomerado, gritando aos céus com a filhinha nos braços. Que cena! Que terror! Mas a sua filha estava em casa, graças a Deus!
De repente, um raio vermelho corta verticalmente a visão de Álvaro, seguido de um baque estrondoso contra o concreto da calçada. Levou um susto tremendo, que deixou-o desnorteado por um instante. Álvaro arregalou os olhos. A menos de cinco passos à sua frente, com um longo vestido vermelho, espatifada na caçada, estava uma mulher. Ficou paralisado, incrédulo. Logo depois, para o completo estarrecimento de Álvaro, começa uma chuva de cartas de tarô.

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(Um exercício para a disciplina de Expressão Escrita II do curso de Cinema da UFSC)