Lendo Nietzsche -
Além do bem e do mal - conclui algo interessante: a linguagem nos seduz a uma apreciação metafísica dos seus significados e, por fim, das coisas às quais esses significados são atribuídos. A palavra “eu”, por exemplo, tende a designar uma concepção metafísica a um aglomerado de processos e de coisas interdependentes, mas que não se configuram numa “coisa em si”. O “eu” não é uma “coisa em si”. Isso pode se tornar um embuste para aqueles que desejam desenvolver um pensamento filosófico a partir apenas do puro significado das palavras. “Deveríamos nos livrar, de uma vez por todas, da sedução das palavras [...] Quem, invocando uma espécie de intuição do conhecimento, se aventura a responder de pronto essas questões metafísicas [...] esse encontrará hoje à sua espera, num filósofo, um sorriso de dois pontos de interrogação” (parágrafo 16)
Fiz uma viagem muito doida há pouco, lendo esses excertos muito bons do ABM. Li só os parágrafos 16-19. Interessantíssimos. Lembro que, da primeira vez que os li, não consegui captar a essência desse pensamento. Mas hoje creio que cheguei até o âmago dela. Nietzsche faz uma crítica ao conceito da
vontade, do
querer; e a essência dessa crítica baseia-se no desprendimento da concepção metafísica desses conceitos.
Ele começa referindo-se ao pensamento desenvolvido por Schopenhauer que, como ele bem ressaltou, reduz o querer, ou a
vontade, a um patamar primário, essencial, básico, isto é, metafísico da natureza humana. Porém, isso representa um preconceito, um engodo lançado pela linguagem, pelo “hábito gramatical”, como Nietzsche colocou. Só mesmo a linguagem para reduzir essa imensa pluralidade de sentimentos e processos químicos e neurológicos, que é a
vontade, a uma coisa unitária.
Estou inclinado a concordar com o bigodudo nesse ponto. Afinal, dizer: “A identidade do sujeito do querer com o sujeito cognoscente, em virtude da qual (e necessariamente) a palavra ‘eu’ inclui e designa ambos, é o ponto nodal do mundo, e como tal inexplicável. [...] uma efetiva identidade do cognoscente com o querente, portanto do sujeito com o objeto,
ocorre de imediato” (Schopenhauer –
A quádrupla raiz do princípio da razão suficiente) – é a mesma coisa que dizer que a parede é o elemento primário da construção de um edifício. Logicamente que não.
Para a produção de uma parede são necessários diversos tipos de processos e materiais, como o cimento e o tijolo. Para a produção de tijolos e cimento são necessários ainda outros processos e outros materiais. Com isso ilustra-se o engano existente em se considerar o ser querente, isto é, o
ato de querer como sendo o elemento básico desse estado, com sendo uma “coisa em si”. Por trás dele existe uma enorme gama de sensações e processos neurológicos e psicológicos.
E é a partir daí que o bagulho começa a ficar muito louco – e por louco quero dizer interessante. Tendo consciência de que existem esses pormenores por trás de todo ato da vontade, Nietzsche começa a fazer um extenso exame das sensações que os envolvem. Só lendo na íntegra essas dissertações para se obter uma experiência rica em profundidade, contundência e dramaticidade que só o Bigode consegue imprimir em sua forma peculiar de escrita – mas vou tentar reproduzir essas idéias mesmo minhas habilidades de redação sendo tão pífias e minguadas quanto às de um filhote de orangotango-de-sumatra se comparadas às dele.
“Em todo ato de vontade há um pensamento que comanda; [...] a vontade não é apenas um
complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um
afeto: aquele afeto do comando. O que é chamado ‘livre arbítrio’ é, essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer: ‘eu sou livre, ‘ele’ tem de obedecer’ – essa consciência se esconde em toda a vontade” (parágrafo 19). Isso quase que resume as conclusões de Nietzsche, mas antes de afirmar o acima ele faz uma genealogia desses sentimentos e afetos, o que dá uma força impressionante a esse argumento.
Como deu pra perceber, pra Nietzsche o que se esconde por trás de todo o querer é o “afeto de superioridade”, um desejo de dominação, um afeto que existe entre a relação ordenar/obedecer; relação esta que existe dentro de nós mesmos, dentro do que se considera como o “eu” (sacou?
Es un chiste!). Aí eu pensei: “porra! lógico, véi!”. Pense bem, toda vez que uma vontade é satisfeita surge um sentimento de poder, de algo dentro de si que se sente o ordenador; ao passo que há algo que se sente dominado, coagido, e tudo isso em diferentes níveis, diferentes amplitudes. Não consigo explicar melhor; sou mesmo um orangotango.
Mas péra aí, não existe também nessa idéia um resquício de metafísica, algo como essa vontade de poder sendo a própria
causa sui? Aí é que está, meu caro. É aí que entra aquele desprendimento dos engodos do hábito gramatical que a tudo quer reduzir a um substrato. Essa tal “vontade de poder” também não passa de uma expressão sonora para se referir a um processo natural, puramente material e físico envolvendo átomos, substâncias, neurônios, hormônios, enfim, uma imensidão de coisas que para sequer sonhar em aventurar-se por ela seriam necessários trabalho e empenho de proporções colossais; no entando, não acho que tal empreitada seja impossível.
Nietzsche –
Além do bem e do mal. Eis aí uma boa dica para leitura – mas não invente de ler se, como eu, tiveres a inteligência similar à de um primata, ou vais acabar destruindo a reputação do filósofo publicando um monte de merda em algum blog por aí. Internet é foda mêrmo.
*Por sorte, creio que ninguém terá ânimo pra chegar até o fim dessa postagem. Quem hoje gosta de filosofia?